quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Medo do desconhecido

Andréa Silva

Em janeiro de 1980 eu ainda era uma menina.Garotinha do tipo atrevida, rostopintado de sardas, nariz empinado, e uma boca miúda incapaz de esconder osdentes pulados para fora, como os de coelho. O cabelo parecia tirado deespiga de milho - era o que diziam as minhas amigas.Meu corpo era magrelo,fiquei assim até os dez anos. Depois da adolescência, não tive mais o prazerde exibir um físico impecavelmente esguio.Os médicos costumam dizer que ascélulas gordurosas têm memória, eu acho que eles estão certos.Quando entreino final da adolescência comecei a engordar e passei a entender o que é otal efeito sanfona; engorda e emagrece, culpa da memória das minhas,famigeradas células adiposas. Mas tudo bem, os meus quase 35 anos detrajetória de vida, acumulam valores muito mais importantes do que aestética "perfeita".
Considero a simplicidade um dos mais ricos ensinamentos que recebi lá emcasa. Ah! Quanta saudade da minha casa! São as minhas raízes que me engrandecem.
Eu nasci em Itabuna, cidade do sul da Bahia, que ficou conhecida a partirdos anos cinqüenta, no Brasil e no mundo, por causa da produção de cacau, fruto de ouro, símbolo de riqueza e poder. Até meados da década de oitenta,Itabuna foi a maior exportadora de cacau do país. Toneladas de sacas comsementes saiam dos armazéns para vários países da Europa.
Na década de oitenta, o surgimento de uma praga agrícola, chamada "Vassoura deBruxa", destruiu quase toda a produtividade da região cacaueira. A doença ataca a flor do cacau, de onde nasce a fruta. A Vassoura de Bruxa se espalha com muita rapidez, e, por isso, milhares de pésde cacau tiveram que ser destruídos. Plantações inteiras foram dizimadas. As árvores eram incineradas na tentativa de matar a doença. A mais recentetécnica usada para recuperar a produtividade é a chamada clonagem de cacau.Os agrônomos fazem enxertos para nascer brotos resistentes à doença.
Meus avós maternos foram empregados de uma fazenda de cacau até o ano de1965. Vovô Sergipe - era assim que chamávamos o velho Ariovaldo Dantas - cuidava da plantação e dos animais. Em troca, ganhava alguns tostões, além defrutas e hortaliças que podia vender na feira da cidade mais próxima, nosfins de semana. As barracas montadas nas feiras garantem parte do sustento demuitas famílias na zona rural. Em Itabuna, cada bairro tem uma feira livre. A maioria funciona aos sábados e domingos. Os vendedores saem das fazendascom suas mercadorias na sexta-feira, à tardinha. Normalmente, toda a família viaja junta. Na "cidade grande" negocia-se alimentos para complementar a renda mensal.
Sou a filha do meio de uma família de três irmãos. Fui criada no bairro daMangabinha - sempre achei esse nome feio, mas me agrada saber que o bairro foi batizado assim por causa dos pés de mangaba. Eram muitos - nas esquinas, na praça do mercado e até nas ladeiras. A mangaba é uma frutinha doce que cai fácil da árvore, de porte médio, generosa na oferta de sombra. Os hectares de área verde sempre foram um destaque no bairro onde vivem famílias de classe média e pobre.
No ano de 1980, a Mangabinha, que sempreteve pouco prestígio entre as localidades da periferia da cidade, passou a ser o bairro mais próximo do aeroporto, o primeiro naquela região. Ter uma pista para pouso de aviões e helicópteros foi um marco no crescimento da região cacaueira. Durante duas semanas, carros de som circularam pelas ruasc onvidando as famílias para a festa de inauguração do aeroporto. Nas rádios - aliás, o rádio sempre foi o veículo de comunicação mais atuante no interior da Bahia, nesta época quatro emissoras funcionava em Itabuna e eu já acompanhava os programas com um gosto especial pela comunicação - os radialistas entrevistavam as autoridades responsáveis pelo aeroporto e divulgavam a programação do primeiro dia de pousos e decolagens. Nós ouvíamosaquelas notícias com muita expectativa.
Lembro-me do domingo de sol forte, estávamos no verão com temperaturas de até 32 graus. Entretanto, nada impediu a nossa peregrinação até o aeroporto. Era o dia da grande festa de abertura, a tão esperada inauguração. Uma trilha, dentro de uma reserva de Mata Atlântica, separava o bairro da Mangabinha doAeroporto Tertuliano Guedes de Pinho. Caminhamos cerca de quarenta minutos para ver um avião de perto, pela primeira vez. Naquele momento minha imaginação de menina foi longe: Como seria bom voar naquele "troço" enorme, que tinha asas como os pássaros, pensei.
Passei parte da infância e toda a adolescência vendo monomotores, bimotores e de vez em quando um avião maiorzinho no céu. Os grandes faziam um barulho insuportável e ao mesmo tempo agradável aos meus ouvidos. Eu olhava os aviões se perderem no horizonte e imaginava quem estava lá dentro. Só poderiaser gente "bacana" das terras do cacau. A maioria dos vôos que desciam emItabuna tinha como destino Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro.
Só quatorze anos depois que vi um avião pela primeira vez, tive aoportunidade de viajar em um deles e me sentir uma daquelas "bacanas" que povoavam a minha imaginação. Eu já não era mais uma menina. Há um ano, tinha saído de casa para morar em Salvador e trabalhar como repórter. Na capital tive o meu segundo emprego, a primeira experiência foi na TV Cabrália, onde trabalhei durante nove meses. Entrei nessa área por acaso, quando termineio curso de letras na UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz). Precisava trabalhar e não estava conseguindo nada nas escolas. Uma amiga me disse para entregar um currículo na TV. Marta me convenceu dizendo que eles contratavam pessoas com nível superior, para auxiliar a produção. Arrisquei e deu certo. Fiz o curso técnico de radialista, para não ficar clandestina na nova profissão.
Com um ano de reportagem, mesmo ainda sendo "foca", fui convidada para fazer parte da equipe da TV Itapoan, na época, retransmissora do SBT (SistemaBrasileiro de Televisão). Até 1997 a TV Itapoan, retransmitiu a programaçãoda emissora paulista. Hoje, o sinal é da Rede Record de Televisão, tambémcom sede em São Paulo.
Com poucos meses no novo emprego fui incluída na lista de profissionais que eram encaminhados à São Paulo, para passar um período no SBT. Uma espécie de reciclagem, que, no meu caso, funcionou muito mais como estágio.
A viagem foi anunciada pelo chefe de reportagem. Lembro-me que ele me entregou as passagens e fez milhões de recomendações. Pela expressão despreocupação e o tom de voz, muito calmo e repetitivo, o chefe deve ter ficado inseguro com a minha ida para São Paulo. "Será que essa moça vai nos representar bem, mesmo com pouca experiência?" ele deve ter se perguntado.
Ouvi todo aquele discurso em silêncio e tentando disfarçar a minha ansiedade. Eu estava apressada, queria voltar para casa e preparar as malas. Será que era um sonho?! Ir para São Paulo! Meu Deus, como será aquele lugar? Milhões de pensamentos me atormentavam. Uma papa-jaca (quem nasce em Itabunaé Itabunense ou Grapiúna, mas somos chamados de papa-jacas por adorar afruta, que também é típica daquela região - as jaqueiras eram plantadas paradar sombra ao cacau, que não é resistente ao sol forte) na maior cidade brasileira? Nossa, parecia mentira!
O grande dia chegou, só então eu percebi que estava nervosa. Acordei antes das seis da manhã. O vôo estava marcado para as 10 hrs. Por volta das oito,chamei um táxi. O motorista era um velho conhecido que ficava na esquina darua onde eu morava, à espera de clientes. A caminho do aeroporto de Salvador, que ainda se chamava Aeroporto Internacional Dois de Julho, senti as mãos frias, uma certa apreensão. Eu estava tão ansiosa que não conseguia nem conversar com o motorista, bem diferente das outras vezes em que precisei dos serviços dele. Aquele homem deve ter pensado que eu estava indo viajar por um motivo nada agradável. Ele chegou a me perguntar se eu ia visitar algum parente. Só não teve coragem de questionar se era alguém doente. Não deu para entrar em detalhes naquela hora: fui monossilábica, apenas disse"não".
Às dez em ponto, eu estava entrando no avião da Transbrasil, uma companhia aérea que durante muito tempo se destacou na aviação brasileira. A empresa posteriormente teve problemas financeiros. Dívidas, falta de crédito eo surgimento de novas companhias aéreas, sem passivo, provocaram a falênciada Transbrasil. Em dezembro de 2001, os aviões da empresa deixaram de voar.Eu ainda tive o prazer de viajar em uma aeronave luxuosa e grande. Muito maior do que os aviões que víamos no aeroporto de Itabuna.
Sentei mais ou menos no meio do Boeing 737. Ao meu lado, na janelinha, estava uma senhora. Com um sorriso largo e uma voz mansa ela me cumprimentou carinhosamente. Respondi com educação. Até fiquei contente em ter aquela mulher ao meu lado. Trouxe-me uma certa tranqüilidade, pelo menos naquele momento. Quando todos os passageiros já estavam acomodados, vi que a mulher colocou o cinto de segurança e me olhou como se quisesse dizer para fazer a mesma coisa. Ainda bem que foi fácil repetir o gesto de atar os cintos.
A decolagem do avião deixou minhas mãos suadas e frias, não tive coragem de olhar pela janela aberta. Nuvens passavam numa velocidade estúpida. Virei o rosto na direção do corredor e fiquei calada sentindo um frio na barriga, muito pior do que quando andei de roda gigante pela primeira vez. Ainda bem que a mulher ao meu lado não puxou conversa. Dentro daquele avião, eu nem imaginava que o pior estava por vir. E não foi uma turbulência que me colocou em situação de vexame nas alturas.
Já estávamos com uns quarenta minutos de vôo. As comissárias de bordo (ou são aeromoças? acho mais simpático) começaram a se movimentar com um carrinho levando bebidas e uma pilha de copos descartáveis. Quando chegaram perto de mim, uma delas perguntou o que eu queria beber. Pedi um suco. "Pois não!" disse a simpática mulher usando uniforme, com cabelos presos, e rosto muito bem maquiado. A aeromoça me entregou, junto com o suco, uma bandejinha com umas divisórias que pareciam marmitas descartáveis. Eu esperava receber apenas o suco. E agora? pensei. Fiquei com a bandeja no colo, com o suco em uma das mãos, sem saber onde colocar tudo aquilo.
A minha companheira de assento também recebeu a tal bandejinha. Ela agradeceu a aeromoça. As duas trocaram olhares. Foi sobre a minha inabilidade, tive certeza. Mas não entendi o porque.
A explicação surgiu como gesto da mulher que abriu a mesinha e colocou a bandeja no lugar certo. Fiz a mesma coisa, mas não tive coragem de dizer uma palavra sequer.
A vigem chegou ao fim no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na grande SãoPaulo. Eu estava tão envergonhada que apenas disse muito obrigada e até logo para a mulher que não sei nem o nome. Incrível, mas só ouvimos a voz uma da outra quando dissemos bom dia, ainda em Salvador. Sair daquele avião parecia o fim de um pesadelo, mas ainda passei por outras provações na maior metrópole brasileira, a terceira maior cidade do mundo perdendo apenas para New York e Cidade do México. São Paulo parecia aindamais gigantesca aos meus olhos.
Andando no aeroporto, puxando uma mala, eu procurava um táxi. Do lado de fora vi muitos carros com faixa na lateral e letreiro luminoso no teto. Eu caminhava em direção a um deles quando um homem bem vestido e falante, do tipo paulista esbanjando classe e educação, me perguntou se eu queria um táxi. Eu disse que sim e o motorista logo pegou a minha mala. Segui o homem até o estacionamento. Eu estava tão encantada e curiosa com toda a grandeza daquele lugar, que nem percebi que o local onde o carro estava não tinha fila de táxi, era um estacionamento comum. Entrei num luxuoso Tempra, com arcondicionado e som ambiente. O motorista perguntou para onde iríamos, jádando partida, como se não quisesse dar tempo para que eu desistisse dacorrida. Meio sem graça e com medo eu disse que queria ir para a RuaAugusta, centro de São Paulo. "Pois não, logo estaremos lá", respondeu otaxista. Comecei a procurara o taxímetro dentro do carro, não encontrei nenhum indício. Foi então que percebi que estava num táxi clandestino. Que roubada.
Maldita premonição do chefe que ficou em Salvador. Uma caipira em São Paulosó ia dar vexame mesmo. São Paulo tem cerca de 35 mil táxis autorizados pela Secretaria de Transportes da Prefeitura, mas eu entrei justamente num clandestino. Ainda bem que o motorista não era "ladrão", talvez um"bandido". Rodamos cerca de uma hora e meia, até chegar ao hotel onde minha reserva foi feita. O trajeto normalmente se faz em 40 minutos, quando não há transito, e não existia congestionamento naquela hora. No caminho o motorista puxou conversa, eu não tive como responder de tanto nervosismo. Passamos por várias e movimentadas avenidas, prédios gigantes, casasluxuosas...Na esquina da Augusta com a Alameda Franca o motorista me disse que estávamos perto. Que perto que nada, ainda rodamos uns vinte minutos. Passamos pela avenida Paulista, Consolação, Centro Velho, até que entramos novamente na Augusta. À aquela altura, o tal motorista já tinha perdido toda a sua elegância, pelo menos na minha avaliação. Um homem tão educado, como poderia ser um enganador profissional? Porque ele não disse a verdade? eu me perguntava. Até os meus pensamentos estavam tomados pela ingenuidade. Imaginase o tal motorista ia se aproximar e dizer:
- Bom dia! Sou dono de um táxi clandestino, a senhorita precisa de um agora?
Quando vi que estávamos na porta do hotel senti uma alívio, acho que nunca tinha experimentado tamanha sensação. Aquela horrorosa situação chegara ao fim. O dono do carro me disse, todo sorridente, chegamos, este é o hotel Brasilton. Como se não bastasse tudo o que já tinha feito, ele ainda me provocou com aquela conversa. O letreiro do hotel era imenso, de longe eu já tinha visto. Tive vontade de dizer a ele que ingenuidade deixa a gente burra, mas não cega.
Só quando percebi que estava a salvo tive uma atitude firme. Abri a porta do carro e irritada perguntei:
- Quanto foi a corrida? O senhor não tem taxímetro para deixar transparentes os seus serviços.
- Baratinho! O cínico ainda teve a coragem de dizer.
Paguei, em valores atuais, cerca de R$ 200,00 por uma corrida que sairia por R$ 130,00, no máximo.
Entreguei o dinheiro e disse ao cara que ele tinha me enganado. No mesmoinstante pensei: poderia ter sido pior.
O cara de pau do motorista sorriu e me desejou um bom dia. Tive vontade dechamar a polícia, mas faltou coragem.
Saí do táxi aliviada, aquela situação poderia ter sido pior. Duzentos reais não representam nada diante do que poderia ter acontecido. Foi o preço de uma lição, para nunca mais esquecer.

Nenhum comentário: