segunda-feira, 1 de outubro de 2007

O cheiro do descaso

Andréa Silva

Um homem negro de estatura mediana, físico magro, mas com músculos visíveis por trás do uniforme de segurança. Na cabeça, um boné com a aba baixa, como se quisesse esconder o rosto. Nem precisava tamanha preocupação. As máscaras cirúrgicas, uma sobreposta a outra, deixaram à mostra apenas os olhos do vigilante que, por trás de uma vidraça, não foram capazes de revelar muita coisa.

O homem, que nega dizer o próprio nome, é funcionário do setor de Emergência do Hospital Roberto Santos, o maior hospital público de Salvador, mantido pelo governo do Estado. Lá são atendidos pacientes da capital e de várias cidades do interior. Naquela manhã de sexta-feira só se ouvia a voz do servidor público em tom de formalidade e intolerância.

- Não tenho autorização para deixar vocês entrarem, nem para ir até o balcão. A direção do hospital não permite. - diz o vigilante aos jornalistas que se apertam por trás da porta de metal com frestas de vidro.Repórteres seguram blocos de anotação, máquinas fotográficas, microfones e câmeras de televisão.

A denúncia de superlotação no setor de emergência do Roberto Santos, divulgada nos noticiários de TV exibidos nas primeiras horas da manhã, atraiu os principais veículos de comunicação de massa que retratam o cotidiano da terceira maior capital do país. Em Salvador, hoje funcionam apenas dois hospitais de grande porte capazes de atender a várias especialidades médicas, além de casos mais complexos e situações de urgência.

A Emergência do Roberto Santos, no bairro do Cabula, periferia de Salvador, tem capacidade para 75 pessoas. Na noite de quinta-feira, a direção médica calculou mais de 140 pacientes. Os primeiros a chegar conseguiram ocupar os leitos mantidos para observação dos doentes. Outros foram colocados em macas nos corredores do hospital.

Cada vez que a porta que dá acesso ao ambulatório se abria, mesmo se fechando segundos depois, era possível ver uma certa correria de enfermeiros e médicos.Muitos usavam mais de uma máscara cirúrgica.

Alguns acompanhantes dos pacientes também usavam máscaras e se comunicavam com os jornalistas através de gestos negativos. Em pouco tempo começamos a ouvir depoimentos assustadores.

- Meu pai tem 73 anos e está internado ai dentro há cinco dias. Ele chegou sentindo dores e precisa ser operado, até agora ele só foi medicado. Não fizeram nem um exame, diz o comerciante João Batista Brandão. Visivelmente abatido, com olheiras que parecem tomar toda a face, João Batista tira do bolso uma máscara cirúrgica que -Preciso disso quando passar por aquela porta entrando nos corredores da emergência. Lá dentro o odor é insuportável, tem um cheiro de coisa podre, desabafa o comerciante.



- Mas de onde vem esse mau cheiro? - pergunto ao homem com a certeza de que estava diante de fonte confiável, principalmente pela naturalidade como descrevia os fatos.

- No lugar onde o meu pai está têm várias pessoas com feridas abertas. Gente precisando amputar membros. Tem uma mulher que vai morrer, a perna dela está escura e o osso exposto. Hoje uma enfermeira tirou o curativo de um senhor que tem uma ferida grande no pé, vimos um líquido escorrer sem parar -.

- O senhor sabe porque essas pessoas não estão sendo atendidas? - pergunto, tentando descobrir porque aquele clima no hospital.

- Estão dizendo lá dentro que não tem cirurgião nem anestesista, eles não estão trabalhando porque não receberam salário.

Naquele momento, o tom de voz do comerciante era de indignação e revolta. Sentimentos compartilhados entre as dezenas das pessoas que voltavam para casa sem atendimento.

A dona de casa Maria de Lurdes saiu de Mar Grande, na Baía de Todos os Santos, com fortes dores no abdômen. Amparada por uma sobrinha, não passou pela triagem feita pelos recepcionistas.

- Eles disseram para procurar outro hospital, por falta de vaga. Só estão atendendo casos mais graves. Mas o caso dela é grave e não vou voltar para casa com minha tia sofrendo assim. Vou tentar outro lugar.

A jovem estudante caminha lentamente amparando a tia à procura de um táxi.

Num outro ponto da cidade, enquanto esperava a abertura de um evento oficial, o secretário de Saúde do estado, Jorge Solla tentava explicar, calmamente, o que não considerou um caos.

- Aquele é um hospital público e, por isso, é normal fazer triagem. Um paciente com mal estar simples pode procurar outro lugar. E, além do mais, novos profissionais da área médica estão sendo treinados para fazer parte do quadro de funcionários do Roberto Santos.

Enquanto o número de médicos e outros profissionais não muda, dezenas de pessoas são obrigadas a voltar para casa sem atendimento. Homens, mulheres pacientes idosos sentindo dores muito mais intensas do que os males físicos. Cada uma daquelas pessoas passou a ter impregnado no nariz o cheiro de descaso que incomoda igual a uma ferida aberta.


Um comentário:

Unknown disse...

Por que cheiro do descaso?

Por que você, que parece conhecer tão bem a rotina dos hospitais a ponto de acusar os profissionais da área de saúde, não tenta se colocar por um momento no lugar deles?
Por que não procura os verdadeiros culpados por essa miséria e caos na sociedade como o FMI, o Banco Mundial e as agências internacionais que fazem empréstimos às custas de cortes no orçamento destinado à saúde e educação das nações emergentes?
Por que não condena os deputados, senadores e políticos que vendem o país por interesses capitalistas e sancionam leis que corroboram as desigualdades e injustiças sociais? Leis formuladas para benefício deles mesmos em detrimento povo.
Por que acusar médicos e profissionais da saúde de descaso?
São apenas humanos, não santos. Possuem sentimentos, pensamentos, emoções humanas. Podem adoecer, cansar e sentir medo da violência que assola nas periferias dessa triste capital.
Desculpe-me, mas acho prematuro mobilizar a população contra médicos e enfermeiros. Percebo que a mídia há muito vêm denegrindo a imagem desses profissionais, quando todos sabemos que o problema é muito mais complexo que isso. A má qualidade no atendimento médico é uma ponta no iceberg. E, na maioria das vezes, esses profissionais não são os culpados. Como trabalhar bem na ausência de infra-estrutura básica?
Proporia um desafio se fosse possível: por que não experimenta um dia de médico nessa instituição?
Não devemos julgar o que desconhecemos. É sinal de ignorância fazê-lo.