quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A borboleta que um dia foi casulo

Era uma vez um casulo muito novo e escuro. Vivia sufocado pela dúvida, a esperar pelo dia que transformaria sua angústia em borboleta. Não sabia o que esperava do lado de fora, mas almejava exaustivamente pela tal mudança. Mal sabia ele que precisaria esperar da natureza a decisão do primeiro bater de asas. Não, o casulo não esperou a ordem natural das coisas e simplesmente seguiu rumo ao inesperado: o dia que se transformara na borboleta Luana. Depois do seu primeiro vôo, ela foi triste. Vivia se culpando pela morte do casulo, até descobrir que foi preciso um fim para sua vida começar.


A história da Lua


Não. Isso não é mais uma fábula. Não falarei que a Lua escondeu-se atrás do sol, para dizer que Luana um dia foi Nivaldo. Nunca foi uma borboleta, mas deu seu primeiro vôo quando ainda era criança. Nunca foi um satélite natural, mas já precisou do calor do sol para se aquecer. Quebrou as asas, sentiu frio.

O pai negou-lhe abrigo ao descobrir que o garoto negro, forte e alto para aquela idade já se desvendara como uma “moça”. Presenciou uma troca de carinhos entre Nivaldo e o filho de seu chefe. Desde então, Nivaldo não tinha mais nada, além de nove anos e uma crise de identidade. Justifica sua história afirmando que “a alma é feminina, coisa que nasce com a gente, sabe?”. A alma não lhe bastava naquele momento. O único apoio veio da mãe. Fez o que pôde para o filho ir morar, pelo menos, com os avós, mas antes algumas surras foram suficientes para que sua mente pueril entendesse que fizera algo incomum. Os avós acolheram. Os avós maltrataram. Até se descobrir como Luana, era mais conhecido como “aberração”. Só depois de alguns anos entendeu que o incômodo de ter aquela aparência, usar aquelas roupas e ter aquele nome tinham outro significado. “Nivaldo morreu desde aquele dia, mas só foi enterrado quando eu tinha uns 15 anos”. Nasce Luana. Morre a avó.

O avô não aceitava o fato de ter um neto que já usava brincos e furtava algumas roupas da falecida avó. Luana não queria mais ter marcas do passado. Saiu do casulo e voou até Nazaré das Farinhas. Ao contar as histórias esforça-se para falar com naturalidade. Retêm a lágrima densa que insiste beirar as pálpebras. Sorri, gesticula. A lágrima cai e a máscara para cílios deixa uma mancha bucólica na face. Ela vira o rosto, como se o passado merecesse morrer de sede. Diz não ter vontade de ver a família novamente, mas quando fala da mãe os olhos ganham um brilho especial. “Ela aceitava tudo que meu pai dizia. Isso é o que me dói”. O tom da voz e o olhar desviado para o solo demonstravam que ela perdoaria a mãe. Hoje muitos quilômetros de distância a separam da dor. A família deve continuar morando em Governador Mangabeira. Luana já escondeu-se na carcaça de um carro velho. Ganhou um novo abrigo no ferro velho da cidade. Um Chevete já sem cor, sem vidros, bancos e sem esperanças. Às vezes ela acordava com um pesadelo ou com um tapa nos pés, que escapuliam para o vazio, onde deveria ter uma porta. Deve ser alguém caçoando daquele personagem singular do conservador interior de Nazaré. Hoje, ela mora num quarto retangular, doado, de alguns metros quadrados dispensáveis: só cabe a cama. É assim que vive Luana, entre piadas e caridades. Movida pela vaidade e pelo deslumbre, ela pede roupas e bijuterias para as madames da cidade. Vez ou outra ganha um belo vestido. Vez ou outra ganha uma risada de deboche. Finge nunca ligar para as desfeitas e oculta-se em críticas. “Você está muito magra!”, disse-me certa vez quando disse não ter um brinco dourado.

Luana também é esguia. Na cintura pouco curvada notam-se alguns músculos indesejáveis que tenta corrigir com doses de hormônio feminino. Os seios querem brotar, mas ainda são murchos, largos e odiados. Ameniza o problema com um sutiã de enchimento. Estica os cabelos crespos e usa-o lambido, escondendo parte da face. Para encobrir o sexo, usa uma calcinha apertada. Esconde dos outros e de si mesma. A anatomia confronta com sua identidade sexual. É um paradoxo inaceitável. Por alguns especialistas ela seria classificada como transexual, mas ela descarta rotulações do gênero. Esconde a carteira de identidade. Por sorte quase não a utiliza. Não tem cartões de crédito, tampouco vale-se do número de RG. Livra-se do sofrimento. “Não, meu nome é Luana!” Responderia aborrecida a maldita pergunta que tanto a maltrata. Algumas beatas da cidade a pirraçam referindo-se pelo nome masculino. Luana simplesmente continua com o seu andar. As “cadeiras” parecem soltar-lhe, o coração parece explodir. Ela chora por dentro.

Tem coração, mas prefere mudar de assunto quando é questionada a respeito. Diz já ter passeado com alguns homens de posse da cidade. A sua introversão é sinônimo de descontentamento. “Sou uma mulher que gosta de homem. Não um homem que gosta de homem!!”, sua fala demonstra uma visão preconceituosa, para quem sofre de tal. Sofre. Sofre intensamente por ser quem não queria, por não ser aceita como queria. Talvez nem todos entendam que Luana nasceu casulo, para, enfim, voar como borboleta.

9 comentários:

Leandro Colling disse...

Parabéns, o melhor texto que li até agora

Paloma Batista disse...

Muito bom o seu texto Arysa! Muito bom mesmo!
Adorei!

Midiã Noelle disse...

Ary,
Está simplesmente de f....
rsrsrsrs
Foi mal aí as reticências.

Parabéns.

Caty Neris disse...

ô gente
sério?
assim até acredito e levo a sério isso
:~~~~

Caty Neris disse...

ops..é arysa..postei com o login de minha irmã

maria ísis disse...

O texto está muito bem escrito, encadeado e tem volume, sabe? E aquilo de unir percepções e fatos concretos. Muito bem feito! Essa sequência...

"Na cintura pouco curvada notam-se alguns músculos indesejáveis que tenta corrigir com doses de hormônio feminino. Os seios querem brotar, mas ainda são murchos, largos e odiados. Ameniza o problema com um sutiã de enchimento. Estica os cabelos crespos e usa-o lambido, escondendo parte da face. Para encobrir o sexo, usa uma calcinha apertada. Esconde dos outros e de si mesma. A anatomia confronta com sua identidade sexual. É um paradoxo inaceitável."

Nossa! Gostei muito!

Observação simples: acho que o título poderia ser menos óbvio... tem tantos elementos interessantes no texto que, algum deles, poderia pular para o título.

Adoro ler vc, Arysa!

Peo Levindo disse...

MUito legal o texto Arysa! Só que eu ache que Luana ainda não saiu do casulo!

Andrea Silva disse...

PARABÉNS ARYSA, SEU TEXTO É LINDO MUITO BEM ESCRITO,TOTALMENTE PROFISSIONAL. QUE TAL TENTAR PUBLICAR GAROTA? FALO SÉRIO, TÁ MUITO BOM MESMO. ALIÁS VC ESCREVE SUPER BEM. ESPERO QUE AO FINAL DO CURSO ESCOLHA ESSE JORNALISMO ENCANTADOR QUE NÓS ESTAMOS APRENDENDO A FAZER. vOCÊ VAI SE REALIZAR E DE QUEBRA VAI NOS DEIXAR ORGULHOSOS. PRINCIPALMENTE LEANDRO!!!!! VA EM FRENTE VC TEM TALENTO.
ANDRÉA SILVA.

Helane Aragão disse...

Estava há pouco no carro com Andréa. Ela me perguntou se já havia lido este texto. Respondi que não. O entusiasmo e a quantidade de elogios proferidos pela minha amiga em relação a "Casulo" - como ela chamou o texto - não foram exageros. "Arysa está cada dia escrevendo melhor. Escreveu um texto lindo. Leandro disse que foi o melhor que leu até agora!"

Acho que os comentários anteriores falam por si. Acho que este texto está entre os poucos que me tocaram de uma forma especial. O conteúdo, a forma que foi escrito, o assunto. Acho que parabéns é pouco para te felicitar, Arysa.

Excelente, tudo.

No futuro ficarei feliz em dizer que você foi minha colega de sala e fomos contemporâneas na faculdade.