segunda-feira, 17 de setembro de 2007

“Choooorando se foi...”

Pedro Levindo

Já era tarde na cidade de Bremen, carinhosamente chamada pro seus habitantes de “o penico da Alemanha”, devido ao agradável clima gélido e chuvoso que impera por lá não apenas no inverno, mas também no verão, primavera e outono, e em outras estações, se essas existissem.

Embora a temperatura fosse sempre baixa, ao entardecer ela começava a baixar mais, como que avisando que, se você acha que está ruim, pense de novo, pois a tendência é piorar.

Percebe-se também, ao entardecer, a mudança de luz. Embora o sol só se ponha quando já é noite, a claridade já é menor ao entardecer. Essa mudança de luz era observada pela por um dos habitantes de um apartamento na mão muito simpática Kornstrasse. Das janelas da cozinha, enormes, de vidro, dava para toda a rua em frente, ampla e larga, o que permitia sempre o fluxo de uma brisa agradável - para quem acha que cinco graus Celsius é agradável (o tal habitante, de nome Gustavo, achava). Gustavo abriu a janela e deixou o vento entrar. Respirava o ar fresco quando João Carlos, vulgo Joca, Cabecita, Joãozinho e outros apelidos menos publicáveis, do alto de sua delicadeza, gritou: “Fecha essa porra!”. Como não era de ferro – afinal, vento frio tem limites, Gustavo fechou. Gritou de volta dizendo que fechou porque era diplomático, respeitava os colegas, etc. Não era por isso, mas também não custava nada valorizar um pouco.

Ainda na cozinha, Guga abriu o armário que guardava os mantimentos de todos. Assim como na geladeira, cada um tinha sua prateleira, que guardava coisas como pão, bolachas e outros alimentos não-perecíveis. No seu caso, guardava também um estoque de vinho, que hoje, para sua decepção, estava zerado. Ele pegou uma das deliciosas Dopel Keks, bolachas de alguma coisa desconhecida com recheio de chocolate, e comeu. Comeu outra. Decidiu parar em duas, mas terminou por pegar o pacote com mais de quinze, ir para o quarto, e devorá-lo todo lá.

Dividia o quarto com Gabriel, que, junto com ele, era o que provavelmente mais saía à noite. Não que os outros não gostassem de sair, mas Gabriel era o mais assíduo e independente, seguido por Gustavo, que tinha sempre que convencer um dos outros dois a sair com ele, porque sozinho também não dava.

Nesse dia bem que ele tentou. Todos os argumentos foram usados. O principal era que não dava pra ficar o dia inteiro dentro de casa num sábado e não entrar em depressão. Aparentemente Joca e Edu (João Eduardo, o último dos quatro), nesse dia, achavam que sim. E assim recorreu-se a Gabe, que quase nunca negava. “Pronde é que você vai hoje Gabe?”, perguntou Guga. “Sei não, tava marcando com os pernambucanos e com Cá Esponja (apelido não muito abonador de Carol, amiga dos quatro) de ir pra Gleis Neun”, respondeu ele. “Aquela lá depois da Bahnhof (estação central)?”, perguntou Guga. “É” - respondeu Gabe. A boate era meio longe e Gustavo nunca tinha ouvido falar nada de bom dela. Pensou três vezes antes de decidir, mas ao final disse que ia.

Chamou Edu e disse: “Pelo menos no mercado comigo você vai né!”. A cara do outro não foi das mais receptivas mas, ao final, ele concordou. Vestiram-se para enfrentar o frio. Não era preciso muito, contudo, pois o mercado ficava a menos de 100 metros do apartamento. Os produtos a serem adquiridos eram os mesmo de todo sábado à tarde: duas caixas tipo longa vida contendo cada uma um litro do pior vinho já produzido no mundo. Um euro cada. Oito reais ao todo, mais ou menos. Um preço até razoável para a preparação dos divertimentos por vir...

Compraram as duas caixas e voltaram correndo pra casa. Chegando lá, Joca olhou os dois, desceu os olhos para os itens na sacola e balançou e cabeça, como quem diz “já vi tudo...”.

Vira mesmo. O resto da tarde foi por Gustavo dedicada a tomar os dois litros de vinho - devidamente adoçados - na única taça que existia na casa. O ritual só se completava com um Diskman, que tocava músicas de axé, tecno e dance. A cena era ridícula, mas ao mesmo tempo engraçada, e para quem a protagonizava, no caso Gustavo, deliciosa, pois, embora possa não parecer, era divertidíssimo beber aquela porcaria ouvindo música e dançando feito um idiota dentro de casa.

A perfeição era completa, pois ao término dos dois litros Guga estava em ponto de bala. Ponto de bala significava que, chegando na boate, ele ia dançar. E nesse dia, especialmente, dançou.

Após uma pequena pausa para tomar banho no micro-banheiro, em que a pia ficava colada no vaso, que ficava colado no boxe, que só tinha água fervente ou gelada, estava pronto.

Gabe estava terminando de passar perfume. Viram o horário do trem. Três minutos, outro só meia hora depois. Como sempre, correram feito loucos até o ponto, conseguiram entrar pouco antes da porta se fechar e seguiram para a boate. Encontraram o pessoal na entrada. Geralmente tímido, Guga falou com todos, de forma educada mas sem muita intimidade (até porque estava meio bêbado e tinha uma imagem a zelar!).

Lá dentro a animação era completa. Para Guga, o efeito do álcool já começava, por incrível que pareça, a passar (bem, dois litros de vinho é muito, mas quando o ritual se repete por meses a fio, fica-se com uma certa resistência). Resolveu não arriscar nenhum passo de dança até se sentir, digamos, mais seguro. Foi então que Cá Esponja (apelido, vocês já devem ter percebido, naturalmente colocado por ela ter se especializado em absorver quantidades industriais de álcool) apresentou a solução ideal: começar a tomar cerveja, que, no caso alemão, trata-se de cerveja de verdade, não a água que se bebe aqui nos Trópicos. A quantidade também é peculiar por aquela bandas. Bebe-se em canecas, cujo tamanho padrão é meio litro. Essa noite cada um tomou uma, duas, três.

Ao final da terceira, a ponto de chamar urubu de meu loiro, Gustavo afinal resolveu arriscar alguns passos. Todos se divertiam com a música eletrônica quando, de repente, não mais que de repente, o DJ colocou uma música brasileira para tocar. MPB remixada? Pagode? Axé? Funk carioca? Não. A música era um clássico. Da lambada. Seu nome é Chorando se foi, maior sucesso do grupo Kaoma (ainda existe?).

Os brasileiros acharam estranho, pois a onda da lambada havia acabado por aqui há pelo menos uma década. As risadas foram gerais e amplas.

Ampla também foi a cobrança, por parte dos estrangeiros, para que algum dos brasileiros se arriscasse a dançar lambada no palco.

Gustavo nunca havia dançado quase nada, quanto mais lambada, quanto mais num palco. Contudo, dada a insistência geral e o nível alcoólico, eis que, num piscar de olhos a vergonha, a timidez e a insegurança arrefeceram. Num puxão de braço de Cá Esponja, em poucos segundos estavam ele e ela no palco dançando lambada, para o delírio da platéia que assistia. Dançaram até bem, até o final da música. Ainda repetiram a dose com outra canção, hit da mesma época.

Após a performance, como toda grande estrela, os dois desceram, chamaram Gabe e foram embora da boate.

Mico tem limite, e é bom impedir seu crescimento antes que se transforme num gorila...

Um comentário:

Leandro Colling disse...

bom texto, leva o leitor a algumas cenas.